O amor, o sexo e o pecado...um mal entendido?
Em sua intervenção no festival Philosophia,
do qual La Vie é parceiro, o jesuíta Dominique
Salin, professor de teologia e de literatura espiritual no Centro
Sèvres, em Paris, varre os
clichês segundo os quais Agostinho teria feito a Igreja pagar por sua
renúncia à sexualidade.
A reportagem é de Isabelle
Francq e
publicada no sítio da revista francesa La Vie, 09-05-2014. A
tradução é de André Langer.
Embora esteja no centro das
preocupações humanas, o amor não se mistura bem com a filosofia e, exceto Platão,
poucos pensadores da Antiguidade fizeram dele um objeto de reflexão. Em Santo Agostinho, ao contrário, entre pecado e piedade, o
amor é central. Para melhor demonstrar isso, essa grande figura da teologia que
foi o primeiro a praticar a arte da autobiografia, detém-se sobre a sua
experiência da paixão.
Antes da palestra que fará no festival Philosophia
de Saint-Émilion, este ano dedicado ao amor, Dominique
Salin, jesuíta e especialista em Agostinho,
fala-nos sobre este grande pensador, ainda desconhecido, do Ocidente.
Um ex-mulherengo?
Um Don Juan arrependido, fulminado pela graça aos
33 anos, Agostinho (354-430) teria
feito o cristianismo pagar sua própria renúncia à carne. Quando falamos de Santo Agostinho e
do amor, devemos imediatamente abandonar esse clichê. No início do século V,
seria ele, o bispo de Hipona (atual Annaba,
na Argélia), o responsável
pela doutrina cristã da sexualidade marcada pela proibição, pelo sentimento de
culpa. Afinal, não é Agostinho o inventor do pecado original? Este pecado
não vai estar em parte relacionado à sexualidade? Para muitos, a culpa de Adão e Eva foi ter comido da maçã, e de nos ter
transmitido geneticamente, isto é, sexualmente, um desejo ilimitado por essa
fruta metafórica, tão conhecida. A realidade é mais complexa e bela, filosófica
e poeticamente.
“Eu me esbanjava e ardia nas minhas
fornicações.” É a partir dessas observações que se esculpiu em Agostinho um costume e arrependido debochado. E
não deixamos de notar que a sua primeira decisão, após sua conversão aos 33
anos, foi despedir sua concubina. A violência com que ele fustiga, em suas Confissões,
o pecador que ele era, seria para alguns o sinal de uma forma doentia de
obsessão sexual. As extravagâncias das quais Agostinho se acusa dizem respeito, porém,
principalmente às férias forçadas que ele passa em Tagaste (Argélia), sua cidade natal, em torno
dos 15 anos. Sendo seu pai um agricultor pobre, teve que esperar por uma bolsa
para fazer seus estudos de retórica. Para passar o tempo, ele ia à missa aos
domingos para aí arrastar as meninas (Confissões III, 3).
Essas loucuras não duraram muito. Aos
17 anos, estudante em Cartago, ele se casa
com a mulher da sua vida, a mãe do seu filho, a quem será fiel durante 15 anos.
Ele rompe com essa mulher que ele amava um ano antes da sua conversão, isto é,
da sua decisão de se fazer batizar e tornar-se monge. Ruptura por razões de
arrivismo. Na verdade, instalado na corte de Milão, orador titular
do imperador – um adolescente sob a regência da sua mãe –, está prestes a ser
nomeado governador de uma província do Império, ele atinge o topo da honras,
mas não tem sorte. Ele termina com sua noiva para se prometer a uma rica
herdeira. No entanto, ela tinha apenas 12 anos. A idade legal era 14 anos. Ele
deve, portanto, esperar.
"(...) Incapaz de suportar o
prazo imposto (dois anos antes de conseguir o que eu pedi), e menos afeito ao
casamento que escravo da paixão, eu fui ao encontro de outra mulher; não era,
certamente, para me casar, mas para alimentar a doença da minha alma e fazê-la
perdurar, sob o olhar atento do Hábito, e isso até a chegada da esposa.” Cego
da dependência do seu impulso sexual, a vergonha que aqui expressa é um ponto
decisivo da concepção de amor de Agostinho. De fato,
até esse dia de agosto 386 quando ouve uma voz vinda do além e decide fazer-se
batizar e tornar-se monge, ele se julgou incapaz de viver na continência. Isso
era para ele um sofrimento, uma frustração.
No início dos estudos, a leitura de Cícero e do estoicismo havia semeado nele o
desejo de tornar-se um sábio, isto é, um santo. A valorização da continência
não é uma invenção cristã. Ela não é dominante na sabedoria greco-romana pagã,
mas também não está totalmente ausente; Plotino, o grande
neoplatônico pagão, era celibatário. Isso não foi suficientemente enfatizado: o
ideal de santidade que Agostinho se fixou aos 16 anos contemplava a
continência. Mas, no momento em que ele está apaixonado, casa-se. A partir de
então, sua vida conjugal é marcada por uma consciência deformada. Ele enfatiza
que o fato de estar casado impediu-o de crescer em sua vida espiritual. Tudo
muda quando ele aceita o que sente ser um convite de Cristo e de São
Paulo para
"tornar-se eunuco pelo Reino de Deus". Ele, finalmente, encontra a
paz do coração, escreveu. Certamente, a continência é difícil. Mas ele nunca se
arrependerá disso.
No princípio, o desejo
Para Agostinho, o amor
ultrapassa o amor sexual. Amar é, em latim, appetere ("um apetite"); é motus ad aliquid,
“um movimento em direção a algo”, ou alguém. O amor é desejo. Ele tem essa
frase maravilhosa: “O amor estende o desejo e o desejo estende o amor”. O amor
é tão natural ao homem quanto o desejo. É o desejo que faz o ser humano. O
animal é conduzido por seus reflexos, instintos e necessidades. O homem também,
mas ele é capaz de adiar a satisfação em vista de um prazer (delectatio) superior.
Ser de desejo, o homem é, portanto,
marcado pela falta. Atrás de qual delectatio correr? O bem supremo, a "vida
feliz", a "bem-aventurança", responde Agostinho.
O estado psicológico que lhe corresponde é a alegria. Ele diz: o homem é feito
para a alegria e Deus é a alegria do homem. Assim, buscando sua delectatio,
é Deus que o homem procura, quer saiba ou não. “Tu nos fizeste para ti, Senhor,
e o nosso coração está inquieto (inquietum) até que descanse em ti (quiescat in te).”
O desejo, infinito, de absoluto é, no
homem, a marca de fábrica de Deus. O desejo de Deus, o amor de Deus, é o motor
do homem. Quando ele pensa em procurar a segurança, o prazer, a tranquilidade,
a serenidade, a justiça, quando ele pensa amar o dinheiro, as mulheres, o
sucesso, na verdade, está buscando a Deus, diz Agostinho.
A glória ou a alegria nunca serão suficientes. O desejo, ou melhor, a
necessidade, incessantemente renascerá. Mas na maioria das vezes, o nosso
desejo erra de alvo. A tendência do indivíduo de se preferir a si mesmo aos
outros e de ver nas outras criaturas o meio de satisfazer suas necessidades leva,
na teologia de Agostinho, a um nome
fatal: o pecado original. Ele deforma o amor em amor de si, em vez de ser, em
primeiro lugar, amor de Deus.
Os dois amores
Assim se esboça a antropologia
agostiniana. Há apenas um amor, porque o desejo é um. Mas esse amor pode
assumir duas formas incompatíveis de acordo com o objeto ao qual ele se dirige. Agostinho escreveu: "Quem ama quer formar
um com quem ama”. Em consequência: “O ser humano torna-se o que ele ama: aquele
que ama a terra, torna-se terra; aquele que ama o Deus eterno irá compartilhar
da eternidade com Deus”. Este é o tema das duas cidades – terrestre e celeste –
que ele formula em A Cidade de Deus (Volume 2, XIV, 28).
A chave da história humana é a
oposição entre o amor que dá a primazia a Deus e aquele que ama, em primeiro
lugar, a si mesmo, ao passo que ele ama as criaturas pelas vantagens que disso
pode obter. No primeiro caso, o amor é mediado pelo amor de Deus: eu amo as
criaturas com um amor que as respeita, que me respeita e que me permite respeitar
a Deus. Eu O respeito em suas criaturas, através delas. No segundo caso, eu não
respeito as criaturas, nem Deus nelas. Eu as amo pelos interesses que posso
obter, pelo uso que posso fazer delas. E eu instrumentalizo o próprio Deus em
vista do meu benefício. A primeira forma de amor Agostinho chamou de amor ou caritas ou dilectio. A outra, que instrumentaliza a
Criação e o próprio Deus, ele a chama de cupiditas ou concupiscentia ou libido.
O “Pecado original”
O ideal seria viver permanentemente do
amor e da caritas: “Amemo-nos uns aos outros!” Mas o
mundo é marcado pelo mal, pelo sofrimento, pela concupiscência – que Agostinho chamou, na linha de São Paulo,
de pecado. Desde a sua concepção, o ser humano é afetado pela violência, pela
injustiça e pelo sofrimento. Ele sofrerá as consequências sendo ele próprio
conduzido à violência, à injustiça, à ganância e à falsidade. Porque seus
antepassados estão marcados por isso, desde Adão, desde as
origens. Pecado original, universal; pecado das origens, que não poupa ninguém.
Será preciso ter a ingenuidade de Jean-Jacques Rousseau para imaginar que a criança nasce pura
e inocente. Freud, por sua vez,
sobre este ponto, dá razão a Agostinho e à Bíblia.
Agostinho não é o inventor do pecado original.
Ele o encontrou em São Paulo. Ele
formalizou a doutrina e a endureceu na sua luta contra o pelagianismo, no final
da sua vida. Para o herege Pelágio, o homem em si
mesmo é saudável. Ele encontra em si mesmo os recursos necessários para
alcançar a virtude, a santidade e a união com Deus. Agostinho respondeu-lhe que o homem comete o mal
que não gostaria de cometer e não consegue praticar o bem que gostaria. O
pecado é um mistério que nos ultrapassa. Somente Cristo pode iluminar o homem e
guiá-lo para a luz.
Essa visão pessimista da natureza
humana se agrava na aurora dos tempos modernos, quando Lutero e os
jansenistas releem Agostinho e endurecem e caricaturizam seu
pensamento. "Como o coração do homem é oco e cheio de lixo!",
exclamou Pascal (Pensées, Sellier181, Lafuma 148). Mas
podemos ser cristãos sem ser jansenistas. É verdade que o pecado original foi
muitas vezes apresentado nos catecismos como uma doença sexualmente
transmissível desde Adão. Daí a dizer que
o ato de procriação é sujo, é apenas um passo.
Dizia-se que fazer amor no casamento,
era um pecado permitido. Devemos reconhecer que a concepção de sexualidade de Agostinho inclinou-se para esse lado. O caráter,
às vezes, incontrolado da pulsão sexual parecia-lhe uma desordem; uma forma de
violência desordenada que não estava nos planos de Deus. Ele via nisso um
sintoma e uma consequência do pecado original.
"Ama e faz o que quiser!"
Para Agostinho, pode-se
amar um homem ou uma mulher, a música, seu trabalho, seus filhos, seus amigos e
também amar a Deus. Pode-se amar a Deus como se ama a sua esposa? A resposta
encontra-se nas Confissões X, livro 6. Ele descreveu com as
mesmas palavras o amor humano e o amor divino. Elas tomam um sentido metafórico
quando se trata de Deus. Elas são deficientes também quando se trata do amor.
Para dizer o amor, a linguagem menos inadequada é a da poesia, da música: da
imagem, da metáfora. A linguagem poética não pretende dizer o indizível, divino
ou humano, mas apenas sugeri-lo. É dessa maneira que toca o nosso coração.
Há em mim mais do que eu mesmo. Há em
mim alguém outro, há em mim um Outro. Arthur Rimbaud disse-o melhor que ninguém: “‘Eu’ é um
outro”. Este outro nele, Agostinho chama de “homem interior”: é ele que
toma Deus em seus braços, é ele que Deus toma em seus braços. Eles são um, como
o homem e a mulher. É a maneira de dizer o que o Mestre
Eckhart afirmará
no século XIV: “Deus e eu somos um, somos semelhantes, somos iguais”. Nesse
nível, o mistério de Deus e o mistério do homem são o mesmo. Falar de Deus e
falar do homem é a mesma coisa.
"Fale-me sobre o amor...".
Tudo bem, mas como saber se é realmente o amor que me faz agir? Que garantia eu
tenho contra os erros e as ilusões? Para o Evangelho, o amor é julgado pelos
frutos. Agostinho não nega isso, e sua homilia sobre a Primeira
Epístola de João (7,7-8)
mostra como ele é sensível à complexidade das situações. Mas, para ele, é o
amor que pode e deve ser a regra da ação. Sempre o Amor.
Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Junho de 2017
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval Neves
Responsabilidade: PASCOM Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - Vila Hamburguesa – SP
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