O TEMPO (Continuação)
Tempo e Memória
A reflexão sobre a memória
é um elemento importantíssimo na filosofia agostiniana, principalmente para
falar do tempo. Ao falar da memória, Agostinho sempre usa as metáforas do lugar
e do espaço como, por exemplo, “campos e vastos palácios”, “santuários
infinitamente amplos”. Usa um vocabulário de beleza esplêndida, porém, não é o
suficiente para dizer o que é a memória (a análise sobre a memória encontra-se
no Livro X das Confissões).
O mesmo acontece com o
tempo, pois, como diz Jeanne Marie, professora do Departamento de Filosofia da
PUC-SP: “é a nossa propensão, quase natural, de falar e de pensar no tempo em
termos (em imagens, em conceitos) espaciais que nos impede de entender sua
verdadeira natureza”4. A linguagem não é suficiente para dizer a memória, tanto
quanto não é suficiente para dizer o tempo. Ou seja, não conseguimos ir além ao
que diz respeito à memória e ao tempo por sermos impedidos pelas categorias
espaciais que fazemos uso.
Agostinho entende que
existe outra maneira de pensar o tempo sem ser em termos espaciais, mas a partir
de outro elemento, que é a linguagem, a fala. E por este motivo ainda
continuamos pensando o tempo, mas sem a tentativa de explicar a sua essência.
Podemos tentar apreendê-lo a partir de nossas práticas linguísticas, porque a
linguagem adquire sentido a partir do tempo. Em outras palavras, não se pode
pensar um sem o outro, pois a linguagem articula o tempo, assim como o tempo
articula a própria linguagem. “Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação
de pensar na linguagem que o diz e que nele se diz”.
Neste sentido, percebe-se
que memória e linguagem são de suma importância para Agostinho em sua tentativa
de dizer o tempo, que ele pensa não só em termos cosmológicos, como medida de
movimento, mas também como interioridade psíquica, “abrindo um novo campo de
reflexão: o da temporalidade, da nossa condição específica de seres que não só
nascem e morrem ‘no’ tempo, mas, sobretudo, que sabem, que têm consciência
dessa sua condição temporal e mortal”.
Em Agostinho, a alma é a
sede das capacidades humanas de compreensão, percepção, raciocínio, sentimento,
em suma, de todas as potencialidades do espírito. Da mesma forma, o filósofo
afirmou que a sede do tempo está na alma. Para entender isso é preciso ter em
mente a idéia de que o tempo faz parte da criação: o tempo é criatura. Fora da
criação existe somente a eternidade de Deus, que consiste na imutabilidade, na
ausência de tempo. A eternidade, assim, não é tempo infinitamente prolongado,
mas uma existência sem nenhum limite, ao contrário de, por exemplo, a
existência humana que é uma distensão, cujas fronteiras são o nascimento e a
morte. “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e
futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das
coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois,
estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança
presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança
presente das coisas futuras.”
A Alma
Os tempos, como afirma
Santo Agostinho, existem na mente – o que em sua reflexão equivale a dizer na
alma. O passado não existe mais, só é possível na alma do ser humano, por meio
da memória. É essa potencialidade humana que permite que as coisas passadas
venham novamente à nossa presença. Apenas a recordação, portanto, é que torna
possível falarmos em tempo passado. O presente, por sua vez, é o conjunto de
nossas sensações e pensamentos do momento, aquilo que percebemos diante de nós
e o que estamos cogitando; é a percepção e a consciência. Finalmente, o futuro
é a resposta: nossas previsões, nossas esperanças.
Os termos lembrança ou
recordação, percepção ou atenção e espera são muito bem traduzidos na seguinte
fala de Agostinho: “Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de
principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que começar a
minha memória dilata-se, colhendo tudo que passa de expectação para o
pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já
recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está
presente e por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais
o hino se aproxima do fim tanto mais a memória se alonga e a expectação se
abrevia, esta que fica totalmente consumida, quando a ação, já toda acabada,
passa inteiramente para o domínio da memória.”
Construção do “EU”
Desse modo, Agostinho, em
todo momento, antes de falar do tempo remete primeiramente à memória. É como se
a memória fosse um recurso que interiorizasse a temporalidade, os rastros de
algo que já não existe mais, mas que está presente. Se o passado já se foi, o
seu vestígio permanece atual na memória. O rastro é algo que existe em ausência
do outro, “é presença de uma ausência”, como diz Derrida. Não há presença plena,
nem uma ausência total. A imagem, vestígio, permanece gravada mesmo depois que
algo já passou. Por isso Agostinho precisou da memória para falar do tempo.
A questão do tempo ainda
permanece obscura e controversa. Muitos autores que pensam sobre o tempo,
pensam a partir de Santo Agostinho. Como é o caso de Paul Ricoeur, em Tempo e
narrativa, que logo no início de seu texto diz: “A antítese principal em torno
da qual nossa própria reflexão vai girar encontra sua expressão mais aguda lá
no fim do Livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Dois traços da alma
humana se acham aí confrontados, os quais o autor com seu gosto marcante pelas
antíteses sonoras dá o nome de intentio e de distentio anumi”.
A análise agostiniana
sobre o tempo, que não é realizada apenas em termos cosmológicos, como medida
de movimento, mas também como inseparável da interioridade psíquica, é um
elemento importante para a constituição do eu ou do sujeito, pois o eu
agostiniano que começa a narrativa das confissões não é o mesmo que conclui. O
tempo é a produção da identidade e da diferença consigo mesmo, pode ser ainda a
dimensão de um sujeito que está se constituindo, pois ele exerce um papel
fundamental na consciência humana, uma vez que tempo e consciência são
indissociáveis.
Agostinho em seu estilo de
fazer Filosofia, de discutir questões, como o tempo, tão importantes para a
cultura ocidental, tornou-se um pensador que vale a pena ser lido e discutido
em muitas esferas do conhecimento. Neste sentido, concluímos com Jeanne Marie Gagnebin:
“Permanece a seguinte questão: hoje, quando não podemos mais acreditar com a
mesma certeza tranqüila que o Outro de nosso tempo, seja a eternidade divina,
como conseguir, porém, uma compreensão diferenciada, inventiva da temporalidade
– e da história! – humana em suas diversas intensidades? Questão essencial, à
qual o pensamento teológico de Agostinho responde e à qual, em sua profundidade
radical, a reflexão contemporânea, seja ela histórica, poética, ou filosófica,
não pode se furtar.”
*Ranis Fonseca de Oliveira
é Mestre em Filosofia pela PUC/SP
Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Dezembro de 2018
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval Neves
Responsabilidade: PASCOM Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - Vila Hamburguesa – SP
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