Santo Agostinho e a Eucaristia
Santo
Agostinho foi um grande enamorado da Eucaristia. O Bispo de Hipona estava
plenamente consciente da Presença real e substancial de Cristo no Sacramento e
sabia que todo cristão é peregrino da cidade de Deus e que, nesse caminho para
a pátria eterna, necessita do alimento do Corpo e do Sangue de Cristo para
poder chegar à meta.
1- Introdução
Sabemos
ainda que, no tempo de Santo Agostinho, em muitas dioceses, não era costume
celebrar a Missa todos os dias, mas só duas ou três vezes por semana, entretanto
sabemos também que, em Hipona, celebrava-se todos os dias. Santo Agostinho demonstra
com isso ter um grande amor pelo Sacramento e plena consciência da necessidade
que seus fiéis tinham da participação cotidiana na mesa do Senhor:“O quarto pedido é: O pão nosso de cada dia
nos dai hoje. O pão de cada dia pode significar aqui diversas coisas: todas as
coisas necessárias para o sustento da vida presente (…) ou então significa o
sacramento do Corpo de Cristo, que recebemos todos os dias, e ainda a refeição
espiritual”.
2- Vós sois o Corpo de
Cristo
A
comunidade é o Corpo de Cristo. Este elemento é ressaltado por Santo Agostinho
de maneira particular em seus sermões da manhã de Páscoa.. Um dos elementos que
neles quase sempre aparece é a explicação do paralelo que existe entre a
comunidade e a Eucaristia. Ambos são Corpo de Cristo. Daí provém uma das frases
mais contundentes de Santo Agostinho, em referência ao texto de 1 Cor 12:
“Quod accipitis vos estis, gratia qua redempti estis – Vós sois o
que recebeis, pela graça com que fostes redimidos”.
Os
fiéis são o próprio Corpo de Cristo. Quem é membro do Corpo de Cristo deve
viver em santidade, como o próprio Cristo é santo.
“Estote quod videtis, et accipite quod estis – Sede o que vedes
(sobre o altar), e recebei o que sois”.
É
uma Igreja mesclada, ecclesia permixta – ele dirá. É como a rede de que nos
fala o Evangelho, na qual havia peixes bons e maus (Mt 13, 47-50), é como o
campo de Deus, em que há trigo e joio (Mt 13, 24-30). Esta mescla terminará quando
vier o final dos tempos e os bons forem separados dos maus.
Enquanto
durar a peregrinação, Santo Agostinho convida os bons à paciência com os que
ainda não o são, e convida os que não são bons a que se convertam, antes que
chegue o momento da separação final: Se os maus não podem separar-se dos bons
agora, devem ser tolerados temporariamente:
“os maus podem achar-se conosco na eira, mas não no celeiro”.
“(Quem quiser viver) não tenha receio da união dos membros: não
seja um membro podre, que mereça ser cortado; nem um membro disforme, de que se
tenha vergonha; seja belo, adaptado, sadio; esteja unido ao corpo e viva de
Deus, para Deus; trabalhe agora na terra, para reinar, depois, no céu”.
“Quem na vida não está, não está em Cristo; e quem não está em Cristo,
não é cristão: eis as profundezas da vossa submersão”.
Santo
Agostinho não propõe, contudo, uma comunhão intimista, em que o cristão se
desentende de seus irmãos, mas trata de uma comunhão plena, em que a comunhão
com Deus há de levar-nos a uma comunhão com os irmãos.
“Não poderei dizer que amo Cristo Cabeça, se
não amar Cristo Corpo”. Não é possível separar a Cabeça do Corpo. Quem não vive
em plena comunhão com o Corpo, não pode dizer que vive em plena comunhão com a
Cabeça:
Santo
Agostinho possui textos muito duros, indicando que quem não vive em comunhão
com o Corpo de Cristo, que é a Igreja e que são os membros da própria
comunidade, não pode aproximar-se a receber o sacramento da Eucaristia.
“Assim o Cristo Senhor significou-nos também e quis que
pertencêssemos a Ele: consagrou em sua mesa o mistério da nossa paz e unidade.
Quem recebe o mistério da unidade e não tem o vínculo da paz, não recebe o
mistério em proveito de si próprio, mas em testemunho contra si. ”.
Em
tais palavras, subjazem certamente dois textos bíblicos lidos e interpretados
por Agostinho em chave comunitária. O primeiro é o texto evangélico que trata
das condições requeridas para se apresentar uma oferta diante do altar de Deus
e de como é preciso, antes de oferecer um sacrifício a Deus, estar reconciliado
e em paz com os irmãos {Mt 5, 23). O segundo é um texto paulino (1 Cor 11 , 29)
que nos diz que “aquele que come e bebe sem distinguir o Corpo do Senhor, come
e bebe a sua própria condenação”.
“Logo, ao nos lembrarmos de ter cometido alguma ofensa contra
nosso irmão, é preciso ir ao encontro da reconciliação e tomar a iniciativa,
não com o movimento de nossos pés, mas com o impulso de nosso coração”.
“Onde está a caridade, aí também reina a paz; e onde há humildade,
lá se manifesta a caridade – ubi autem caritas, ibi pax; et ubi humilitas, ibi
caritas”.
A
Eucaristia é um sacramento, sobretudo, de comunhão, pois vincula os fiéis a
Cristo e também os une entre si. Isto seria verdadeiramente viver uma
espiritualidade de comunhão, a saber: viver intimamente unidos a Cristo Cabeça
e, ao mesmo tempo, unidos ao Corpo de Cristo, ou seja, à própria comunidade,
reconhecendo, em cada irmão da comunidade, um membro do Corpo de Cristo. Faz
falta, certamente, muita fé para poder ver na pessoa concreta com quem partilho
a minha vida a presença de Cristo, mas a Eucaristia deve-se converter num
compromisso de amor fraterno, pois cada irmão é membro do Corpo de Cristo. Daí
a necessidade da paciência, da compreensão, da oração pelos irmãos. Tudo, sem
dúvida, a partir do amor:
“A Cabeça está no céu, mas tem membros na terra”. Dê um membro de
Cristo a outro membro de Cristo: quem tem dê ao necessitado. Membro de Cristo
és tu, que tens o que dar; membro de Cristo é o outro e necessita que lhe dês.
Caminhais ambos, por um mesmo caminho, ambos sois companheiros de viagem”.
3- Alimento para os peregrinos
Santo
Agostinho reconhece na Eucaristia o alimento que os peregrinos da cidade de
Deus devem tomar em sua jornada para a casa do Pai. A Eucaristia tem de recordar
aos membros de uma comunidade que estes estão de passagem, que são peregrinos,
que não existem realidades definitivas neste mundo, mas tudo deve ser caminho e
peregrinação em direção a Deus:
“Somos todos peregrinos. Cristão é aquele que, tanto em sua
própria casa como em sua própria pátria, se reconhece peregrino. Nossa pátria
está no alto, lá não seremos hóspedes, pois cada um de nós aqui, mesmo em sua
casa, é hóspede”.
A
Eucaristia tem, portanto, esse sentido, uma dimensão tanto de recordação, como
de sacramento, ou seja, de dar alento aos que caminham para Deus e de
robustecê-los em suas necessidades. É o que comenta Santo Agostinho:
“O que será ali a flor do trigo a não ser aquele pão que desceu do
céu até nós? Como nos saciará na própria pátria Aquele que tanto nos alimentou
na peregrinação”!
4- A unidade
Outro
elemento muito presente nos sermões pascais de Santo Agostinho com relação à
Eucaristia é a unidade. Santo Agostinho viveu numa Igreja que se encontrava dividida,
principalmente por causa do cisma donatista. Ele será, por isso, um grande
amante da unidade e da paz da Igreja e usará, diversas vezes, da imagem do Pão
e do Vinho eucarísticos para falar da unidade. Como o pão não se formou de um
grão só, nem o vinho de um único racimo de uva, assim também, em cada
comunidade, há muitas pessoas. Para que haja a unidade entre elas, contudo, é
preciso que morra o próprio ‘eu’, para que possa nascer o ‘nós’.
Santo
Agostinho usa da imagem do moinho para ilustrar as penitências, que levam os
fiéis a “moer-se” para morrer a si mesmos e unir-se aos demais, exatamente como
ocorre com os grãos de trigo no moinho, e para entrar em condições de unir-se
pela ação do Espírito Santo, pois o Espírito é água e é fogo. Como o pão se
amassa com água e é assado ao fogo, assim também os fiéis, já dispostos pela
penitência quaresmal, e pelas penitências do dia a dia, são levados pela ação
do Espírito a unir-se a seus irmãos:
O
Apóstolo, diz com efeito:
“há um só pão e nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo.
Assim explicou o sacramento da mesa do Senhor: somos muitos, mas somos um único
pão, um único corpo. Neste pão, manifestai-vos como deveis amar a unidade.
Porventura aquele pão foi feito de um único grão? Não eram muitos os grãos de
trigo? Mas, antes que chegassem a ser pão, estavam separados. Por meio da água
é que foram unidos, depois de certa moagem: porque, se o trigo não for moído e
amassado com água, não chega à forma que se chama pão. Assim vós também, dias
atrás, pela humilhação do jejum e pelo mistério do exorcismo, éreis como que
moídos. Veio o Batismo e, pela água, fostes banhados para poderdes receber a
forma de pão, mas ainda não há pão se não se passa pelo fogo”.
O
que significa o fogo?
“Trata-se
da unção do óleo. O fogo que nutre é o sacramento do Espírito Santo. Prestai
atenção nos Atos dos
Apóstolos,
( … ) vem, pois, o Espírito Santo: depois da água, o fogo e sois convertidos em
pão, que é o Corpo de Cristo”.
“Se retirares a palavra, não há senão pão e vinho: acrescenta a
palavra, e já há outra coisa. E essa outra coisa, o que é? O Corpo de Cristo e
o Sangue de Cristo”.
Fazendo
um belo jogo de palavras, Santo Agostinho explica que os que bebem juntos do
cálice vivem juntos em concórdia.
Nobiscum
hoc estis: simul enim hoc sumimus, simul bibimus, quia simul vivimus – Sois
isto conosco: pois juntamente o consumimos, juntamente bebemos, porque vivemos
juntos.
Por
isso, Santo Agostinho fala da Eucaristia como o sacrifício de Deus e nosso. A
Eucaristia é o sacrifício de Cristo oferecido ao Pai, a que cada fiel cristão
se une por meio de Cristo e se oferece também ao Pai como uma oblação viva,
santa e pura.
5- Unidade e não uniformidade
Para
Agostinho, a unidade não implica uniformidade, ou seja, que se faça tabula rasa
de todos os dons e carismas recebidos. Trata-se de estabelecer uma igualdade verdadeiramente
comunitária, que redimensiona a pessoa e a faz consciente da riqueza que a
unidade lhe oferece, ajudando-a a libertar-se de elementos secundários que
podem converter-se em ídolos (raça, língua, família, país etc.), elementos que
corremos o risco de querer adorar em lugar de Deus. Caindo, nos assim chamados
“fundamentalismos.
Libertados
desses elementos secundários capazes de escravizar a pessoa, o que procuramos é
a unidade comunitária, na qual cada um pode e deve contribuir com sua própria
particularidade, com o dom que recebeu de Deus, uma vez que todo dom se recebe
sempre em vista de um serviço que se pode prestar a uma determinada comunidade.
Uma comunidade é, portanto, como um tecido multicolorido, em que a unidade da
trama não é quebrada pela variedade das cores.
Diz
Santo Agostinho:
“Como a variedade de cores, num bordado, é tal que não se vê
perturbada a graça da unidade, assim também, entre os irmãos, os diversos dons
sejam tais que não se lhes adira qualquer discrepância de inveja”.
“Assim, tua alma não é própria, mas de todos os irmãos, cujas
almas são tuas; ou melhor, cujas almas juntamente com a tua não são almas, mas
uma única alma, a única de Cristo” …
6- Viver da Eucaristia
Santo
Agostinho indica com força a dimensão de graça que o Sacramento da Eucaristia
possui. Quem quiser viver, já tem onde viver e de que viver: do Corpo e Sangue
de Cristo. Para que o Sacramento seja fonte de vida, porém, é preciso aceitar
as três condições que Santo Agostinho coloca como sinônimos da Eucaristia, numa
das mais famosas frases agostinianas sobre ela:
Oh, sacramento de piedade! Oh, sinal de unidade!
Oh, vínculo de caridade! Quem quiser viver, tem onde viver, tem de
que viver.
Aproxime-se, creia, para que faça parte deste Corpo, para que seja
vivificado.
É
preciso, portanto, viver o sacramento de piedade. Trata-se, por um lado, da manifestação
da misericórdia de Deus aos homens (Sua condescendência), mas é, por outro
lado, convite a que os seres humanos modelem sua vida piedosamente e saibam
sempre se dar a Deus, com fidelidade (colocar Deus sempre no centro da própria
vida, do próprio coração).
A
Eucaristia é ainda sinal de unidade, isto é, é penhor e exigência de unidade ao
mesmo tempo. Recebe-se a unidade e a comunhão com Cristo Cabeça, como dizíamos
antes, mas isso é também uma exigência de viver a comunhão com todos os membros
do Corpo de Cristo.
Finalmente,
a Eucaristia é vínculo de caridade. Recebe-se a caridade e cria-se um forte
vínculo de amor ao se receber a Eucaristia. Quando isso é verdade, a vida do
fiel está cheia da vitalidade de Deus, de Seu próprio amor, de Sua graça, e os
demais elementos humanos passam todos ao segundo plano, pois o amor, a
caridade, é a raiz da qual não podem brotar senão bons frutos:
“Ama e faze o que quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor;
se falas em tom alto, fala por amor; se corriges, corrige com amor; se perdoas,
perdoa por amor. Tem no fundo do coração a raiz do amor: dessa raiz não pode
sair senão o bem”!
Quem,
portanto, quiser viver, tem de aproximar-se da fonte da vida, que é a Eucaristia;
mas, como dissemos, deve estar disposto a cumprir as três condições estipuladas
por Santo Agostinho. É só assim que a reestruturação levará de fato, a uma
revitalização.
Oh, sacramento de piedade! Oh, sinal de unidade! Oh, vínculo de
caridade! Quem quiser viver, tem onde viver, tem de que viver. Aproxime-se, creia, para que faça parte deste
Corpo, para que sejas vivificado.
Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Junho de 2018
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval NevesResponsabilidade: PASCOM Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - Vila Hamburguesa – SP
Site da Paróquia: http://www.pnslourdes.com.br