FÉ,
ESPERANÇA DE CARIDADE
Resumo: Diante da revelação
de Deus, que propõe o seu projeto de salvação, o ser humano é convidado a
responder através da fé, da esperança e da caridade. Crendo, esperando e amando
o homem coloca-se na dinâmica de uma existência voltada para Deus. Mais do que
um conjunto de conteúdos, é um caminho de vida, uma disposição, uma capacidade
e disponibilidade de cumprir todos os dias um “ato de fé”, de colocar-se nas
mãos de Deus com plena confiança, esperando Dele a plenitude dos bens e a vida
eterna. Santo Agostinho aprofundou a interioridade da decisão da fé, a sua
ligação com a esperança e a caridade, tudo com uma forte referência a Cristo.
Por
volta de 4212 Agostinho escreveu o Enchiridion de fide, spe et caritate (Manual
sobre a fé, a esperança e a caridade) ao seu amigo Lourenço, e apresentou
algumas inquietações práticas: quais as verdades que o cristão deve crer e as
heresias que precisa evitar? Em que medida a razão pode intervir a favor da
religião? O que foge ao seu alcance? O que deve ocupar o primeiro e o que deve
ocupar o último lugar no ensinamento e na vida cristã? Qual o fundamento seguro
e autêntico da fé católica (Ench.1.4)?
Agostinho
busca ser fiel às questões levantadas, mas as ultrapassa. Sua exposição é rica
em idéias, aborda os principais dogmas do cristianismo, mesclando-o a questões
morais. Este pequeno Manual será a obra norteadora deste texto. Do texto, é
possível extrair algumas noções básicas do pensamento agostiniano que são
importantes numa consideração teológica sobre a virtude da fé, da qual nasce a
boa esperança, acompanhada da santa caridade (Ench. 30.114). Sendo assim, após
uma breve definição de virtude; voltaremos nossa atenção para a fé e depois
abordaremos rapidamente as virtudes da esperança e da caridade; concluindo com
uma abordagem sobre a interdependência das três.
I.
Virtude Ao lermos o Enchiridion, o percebemos menos como uma proposta de
caráter intelectualista e mais como uma obra de aspecto histórico e prático,
assim como práticas eram as inquietações de Lourenço. Embora não falte uma
profunda reflexão teológica e espiritual, permanece no Bispo de Hipona uma
preocupação de ordem formativa e pastoral, que permitiu colocar juntas as três
virtudes em um equilíbrio dinâmico, realizando no tratado dessas como que um
compêndio da vida cristã.
Não
encontramos no Enchiridion uma definição clara do termo virtude, aliás, é uma
palavra pouca citada. Mas percebemos claramente no decorrer da obra que é a
essência da vida cristã. A virtude é a ordem do amor, diz respeito à vivência
concreta, é o meio através do qual a ordem moral se estabelece nas ações
humanas. Ordem que pode realizar-se mediante o uso disciplinado da razão (Ench.
1.4).
A
virtude não é meta em si mesma, é caminho para a verdadeira felicidade humana
que é a visão de Deus (Ench. 1.5). Caminho virtuoso que a razão sozinha não
consegue percorrer, mas que iluminada pela Sabedoria divina, assume o compromisso
de sustentar o cristão nesta vivência (Ench. 1, 4). Está de acordo com o
pensamento agostiniano a distinção entre as virtudes naturais e as assim
chamadas virtudes infusas ou teologais.
As
primeiras são derivadas da experiência e da razão, se referem a um bem finito,
às quais o homem pode chegar pelos princípios de sua natureza.
As
segundas referem-se à felicidade ou a bem-aventurança que excede a natureza do
homem, as quais ele pode chegar somente pela graça divina (Ench. 1.4).
Chamamos
de teologais as virtudes da fé, esperança e caridade porque tem origem no
próprio Deus que as infunde (dom absoluto), possuem Deus como objeto e fim, e
se referem à sua veneração. Por elas somos ordenados a Ele (Ench. 1.3).
II.
Virtude da Fé Deus amavelmente vem ao encontro do ser humano para salvá-lo e
doa a fé para que ele possa aceitar a verdade salvadora. Agostinho salienta o
aspecto gratuito da fé, que é dom, é graça, é fruto da bondade de Deus que não
abandonou o gênero humano na perdição do pecado, mas que na sua misericórdia propõe
a salvação (Ench. 8.27).
Uma
definição de fé nos escritos agostinianos não é tão fácil.3 Mais do que uma
completa e exaustiva definição, propomos algumas citações contidas na obra que
nos ajudam a compreender essa virtude. A princípio pode parecer um tanto
complexa e desarticulada, mas posteriormente virá explicitada nas abordagens
sucessivas. Nos escritos de Agostinho o substantivo fé e o verbo crer são
utilizados como termos equivalentes. A fé é uma virtude sobrenatural (Ench.
1.6), um dom (Ench. 9.31) através da qual o ser humano, sob a autoridade divina,
aceita livremente (Ench. 9.32) a verdade salvadora revelada por Deus em Jesus
Cristo (Ench. 1.5). Verdade que vem testemunhada pela Sagrada Escritura e pela
Igreja (Ench. 15.56). Crer é assentir à verdade da revelação acolhendo o
mistério de Deus (Ench. 7, 20).
Desta
pequena definição, muitos elementos nos são apresentados. A fé é dom, mas
também ato voluntário que implica empenho na aceitação dos conteúdos revelados
que exprimem a intervenção histórico-salvífica de Deus. Aliás, o aspecto
conteudístico é muito presente na visão agostiniana. Quando falamos em
conteúdos, dizemos que a fé é uma forma de conhecimento (Ench. 1.1), porém
diversa, específica. Um conhecimento das coisas que não se vêem (Heb 11,1). Uma
participação na Sabedoria divina através da iluminação (Ench. 1.1). O que
também não significa desprezo da razão, uma vez que esta é fundamental no movimento
para a fé (Ench. 1.4).
Caso
mantenhamos a estrutura analítica tradicional do ato de fé, que compreende dom,
vontade e intelecto, podemos afirmar que Agostinho os integra de maneira muito
equilibrada. É verdade que o acento parece incidir sobre o primeiro, sobre o
aspecto gratuito da fé (dom, graça). Mas é fundamental o aspecto intelectivo,
uma vez que é sempre presente a relação fé e razão e Agostinho não possui uma
análise especulativa geral e sistemática sobre o ato de fé, mas deixou uma
herança muito grande e importante para as reflexões sucessivas porque Agostinho
privilegia o aspecto do conteúdo da fé. Também não fica esquecida a
pré-disposição (vontade) do homem que livremente acolhe esse dom e procura
vivê-lo na concretude da sua vida (caridade).
No
Enchiridion a virtude da fé vem abordada através da explicação dos artigos do
“Símbolo Apostólico” (Ench. 2.7), o qual diz o que e como se deve crer. Crer
não é só uma experiência pessoal, íntima, mas também expressão verbal através
de uma linguagem.
O
“Credo”, apresentando uma síntese breve do conteúdo a ser crido, pode
facilmente ser conservado na memória.
Deve
ser sabido de cor, escrito não em tábuas, mas no coração para que seja possível
amar aquilo que se crê e a fé possa operar por meio da caridade.
O
“Credo” exprime a pleno título à fé pessoal de cada crente que abre o seu
coração para a ação da graça e com a boca professa a fé na Trindade. III. Fé na
Trindade: Deus Pai III.1. Gerados à imagem e semelhança de Deus O objeto da fé
cristã não se encontra na pesquisa natural. O mais importante é crer que a
causa de toda a realidade criada, celeste e terrestre, visível e invisível é
unicamente a bondade do Criador, único e verdadeiro Deus que é Trindade (Ench.
3, 9).
Iniciamos
o Símbolo professando a fé na onipotência Criadora de Deus, significando que
não existe nenhuma natureza que não tenha sido criada por Ele.6 Todos os seres
existentes, toda a natureza, toda a história humana tem as suas raízes neste
acontecimento primordial. Deus é presente como substância criadora do mundo. O
ser humano como criatura é ontologicamente dependente de Deus, que na sua
bondade, é causa de todas as coisas criadas (Ench. 3 9).
O
homem, que saiu das “mãos” de Deus, traz consigo a possibilidade de “sair de
si” e de relacionar-se, no conhecimento e no amor, com o Mistério que o criou.
A “imagem e semelhança” (Gn 1,26), à qual foi criado, o coloca numa dinâmica
que o orienta ao seu Criador, o que significa que ele não só é capaz de Deus, mas
tende para Ele. A plena realização, a felicidade do ser humano está justamente
nessa capacidade de relacionar-se com o “Tu” de Deus.
O
homem não é dono de si e nem causa de si, não tem origem e nem fim em si mesmo,
mas é de Deus e para Deus. Negar esse vínculo não é libertar-se, mas perder ou
negar o próprio ser por uma auto-suficiência que não compete à criatura.
Ao
contrário, quando reconhece a sua dependência do criador, torna-se autônomo.
Tendo presente a própria experiência pessoal de Santo Agostinho, percebemos
nele um profundo conhecedor do aspecto psicológico do ser humano que se move ou
resiste à fé.
A
fé é o ponto de chegada de um coração inquieto, que enquanto não encontra e não
adere a Deus não descansa. A busca de “sentido” de Agostinho é, ainda hoje,
expressiva para nós.
O
seu coração quando se encontrou com a verdade da fé, encontrou também a
felicidade na descoberta do genuíno amor de Deus. “Tarde te amei, beleza antiga
e tão nova, tarde te amei. Sim, porque tu estavas dentro de mim e eu fora”.
A
inquietude do coração desaparece no encontro confiante do homem com Deus na fé.
O homem foi feito para Deus e esse destino em Deus não é resultado da
causalidade, mas do plano amoroso de Deus.
(Continua
no próximo mês)
Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Janeiro de 2019
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