terça-feira, 1 de janeiro de 2019

REFLETINDO COM SANTO AGOSTINHO

FÉ, ESPERANÇA DE CARIDADE

Resumo: Diante da revelação de Deus, que propõe o seu projeto de salvação, o ser humano é convidado a responder através da fé, da esperança e da caridade. Crendo, esperando e amando o homem coloca-se na dinâmica de uma existência voltada para Deus. Mais do que um conjunto de conteúdos, é um caminho de vida, uma disposição, uma capacidade e disponibilidade de cumprir todos os dias um “ato de fé”, de colocar-se nas mãos de Deus com plena confiança, esperando Dele a plenitude dos bens e a vida eterna. Santo Agostinho aprofundou a interioridade da decisão da fé, a sua ligação com a esperança e a caridade, tudo com uma forte referência a Cristo.

Por volta de 4212 Agostinho escreveu o Enchiridion de fide, spe et caritate (Manual sobre a fé, a esperança e a caridade) ao seu amigo Lourenço, e apresentou algumas inquietações práticas: quais as verdades que o cristão deve crer e as heresias que precisa evitar? Em que medida a razão pode intervir a favor da religião? O que foge ao seu alcance? O que deve ocupar o primeiro e o que deve ocupar o último lugar no ensinamento e na vida cristã? Qual o fundamento seguro e autêntico da fé católica (Ench.1.4)?

Agostinho busca ser fiel às questões levantadas, mas as ultrapassa. Sua exposição é rica em idéias, aborda os principais dogmas do cristianismo, mesclando-o a questões morais. Este pequeno Manual será a obra norteadora deste texto. Do texto, é possível extrair algumas noções básicas do pensamento agostiniano que são importantes numa consideração teológica sobre a virtude da fé, da qual nasce a boa esperança, acompanhada da santa caridade (Ench. 30.114). Sendo assim, após uma breve definição de virtude; voltaremos nossa atenção para a fé e depois abordaremos rapidamente as virtudes da esperança e da caridade; concluindo com uma abordagem sobre a interdependência das três.

I. Virtude Ao lermos o Enchiridion, o percebemos menos como uma proposta de caráter intelectualista e mais como uma obra de aspecto histórico e prático, assim como práticas eram as inquietações de Lourenço. Embora não falte uma profunda reflexão teológica e espiritual, permanece no Bispo de Hipona uma preocupação de ordem formativa e pastoral, que permitiu colocar juntas as três virtudes em um equilíbrio dinâmico, realizando no tratado dessas como que um compêndio da vida cristã.

Não encontramos no Enchiridion uma definição clara do termo virtude, aliás, é uma palavra pouca citada. Mas percebemos claramente no decorrer da obra que é a essência da vida cristã. A virtude é a ordem do amor, diz respeito à vivência concreta, é o meio através do qual a ordem moral se estabelece nas ações humanas. Ordem que pode realizar-se mediante o uso disciplinado da razão (Ench. 1.4).

A virtude não é meta em si mesma, é caminho para a verdadeira felicidade humana que é a visão de Deus (Ench. 1.5). Caminho virtuoso que a razão sozinha não consegue percorrer, mas que iluminada pela Sabedoria divina, assume o compromisso de sustentar o cristão nesta vivência (Ench. 1, 4). Está de acordo com o pensamento agostiniano a distinção entre as virtudes naturais e as assim chamadas virtudes infusas ou teologais.

As primeiras são derivadas da experiência e da razão, se referem a um bem finito, às quais o homem pode chegar pelos princípios de sua natureza.

As segundas referem-se à felicidade ou a bem-aventurança que excede a natureza do homem, as quais ele pode chegar somente pela graça divina (Ench. 1.4).

Chamamos de teologais as virtudes da fé, esperança e caridade porque tem origem no próprio Deus que as infunde (dom absoluto), possuem Deus como objeto e fim, e se referem à sua veneração. Por elas somos ordenados a Ele (Ench. 1.3).

II. Virtude da Fé Deus amavelmente vem ao encontro do ser humano para salvá-lo e doa a fé para que ele possa aceitar a verdade salvadora. Agostinho salienta o aspecto gratuito da fé, que é dom, é graça, é fruto da bondade de Deus que não abandonou o gênero humano na perdição do pecado, mas que na sua misericórdia propõe a salvação (Ench. 8.27).

Uma definição de fé nos escritos agostinianos não é tão fácil.3 Mais do que uma completa e exaustiva definição, propomos algumas citações contidas na obra que nos ajudam a compreender essa virtude. A princípio pode parecer um tanto complexa e desarticulada, mas posteriormente virá explicitada nas abordagens sucessivas. Nos escritos de Agostinho o substantivo fé e o verbo crer são utilizados como termos equivalentes. A fé é uma virtude sobrenatural (Ench. 1.6), um dom (Ench. 9.31) através da qual o ser humano, sob a autoridade divina, aceita livremente (Ench. 9.32) a verdade salvadora revelada por Deus em Jesus Cristo (Ench. 1.5). Verdade que vem testemunhada pela Sagrada Escritura e pela Igreja (Ench. 15.56). Crer é assentir à verdade da revelação acolhendo o mistério de Deus (Ench. 7, 20).

Desta pequena definição, muitos elementos nos são apresentados. A fé é dom, mas também ato voluntário que implica empenho na aceitação dos conteúdos revelados que exprimem a intervenção histórico-salvífica de Deus. Aliás, o aspecto conteudístico é muito presente na visão agostiniana. Quando falamos em conteúdos, dizemos que a fé é uma forma de conhecimento (Ench. 1.1), porém diversa, específica. Um conhecimento das coisas que não se vêem (Heb 11,1). Uma participação na Sabedoria divina através da iluminação (Ench. 1.1). O que também não significa desprezo da razão, uma vez que esta é fundamental no movimento para a fé (Ench. 1.4).

Caso mantenhamos a estrutura analítica tradicional do ato de fé, que compreende dom, vontade e intelecto, podemos afirmar que Agostinho os integra de maneira muito equilibrada. É verdade que o acento parece incidir sobre o primeiro, sobre o aspecto gratuito da fé (dom, graça). Mas é fundamental o aspecto intelectivo, uma vez que é sempre presente a relação fé e razão e Agostinho não possui uma análise especulativa geral e sistemática sobre o ato de fé, mas deixou uma herança muito grande e importante para as reflexões sucessivas porque Agostinho privilegia o aspecto do conteúdo da fé. Também não fica esquecida a pré-disposição (vontade) do homem que livremente acolhe esse dom e procura vivê-lo na concretude da sua vida (caridade).

No Enchiridion a virtude da fé vem abordada através da explicação dos artigos do “Símbolo Apostólico” (Ench. 2.7), o qual diz o que e como se deve crer. Crer não é só uma experiência pessoal, íntima, mas também expressão verbal através de uma linguagem.

O “Credo”, apresentando uma síntese breve do conteúdo a ser crido, pode facilmente ser conservado na memória.

Deve ser sabido de cor, escrito não em tábuas, mas no coração para que seja possível amar aquilo que se crê e a fé possa operar por meio da caridade.

O “Credo” exprime a pleno título à fé pessoal de cada crente que abre o seu coração para a ação da graça e com a boca professa a fé na Trindade. III. Fé na Trindade: Deus Pai III.1. Gerados à imagem e semelhança de Deus O objeto da fé cristã não se encontra na pesquisa natural. O mais importante é crer que a causa de toda a realidade criada, celeste e terrestre, visível e invisível é unicamente a bondade do Criador, único e verdadeiro Deus que é Trindade (Ench. 3, 9).

Iniciamos o Símbolo professando a fé na onipotência Criadora de Deus, significando que não existe nenhuma natureza que não tenha sido criada por Ele.6 Todos os seres existentes, toda a natureza, toda a história humana tem as suas raízes neste acontecimento primordial. Deus é presente como substância criadora do mundo. O ser humano como criatura é ontologicamente dependente de Deus, que na sua bondade, é causa de todas as coisas criadas (Ench. 3 9).

O homem, que saiu das “mãos” de Deus, traz consigo a possibilidade de “sair de si” e de relacionar-se, no conhecimento e no amor, com o Mistério que o criou. A “imagem e semelhança” (Gn 1,26), à qual foi criado, o coloca numa dinâmica que o orienta ao seu Criador, o que significa que ele não só é capaz de Deus, mas tende para Ele. A plena realização, a felicidade do ser humano está justamente nessa capacidade de relacionar-se com o “Tu” de Deus.

O homem não é dono de si e nem causa de si, não tem origem e nem fim em si mesmo, mas é de Deus e para Deus. Negar esse vínculo não é libertar-se, mas perder ou negar o próprio ser por uma auto-suficiência que não compete à criatura.

Ao contrário, quando reconhece a sua dependência do criador, torna-se autônomo. Tendo presente a própria experiência pessoal de Santo Agostinho, percebemos nele um profundo conhecedor do aspecto psicológico do ser humano que se move ou resiste à fé.

A fé é o ponto de chegada de um coração inquieto, que enquanto não encontra e não adere a Deus não descansa. A busca de “sentido” de Agostinho é, ainda hoje, expressiva para nós.

O seu coração quando se encontrou com a verdade da fé, encontrou também a felicidade na descoberta do genuíno amor de Deus. “Tarde te amei, beleza antiga e tão nova, tarde te amei. Sim, porque tu estavas dentro de mim e eu fora”.

A inquietude do coração desaparece no encontro confiante do homem com Deus na fé. O homem foi feito para Deus e esse destino em Deus não é resultado da causalidade, mas do plano amoroso de Deus.

(Continua no próximo mês)




Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Janeiro de 2019
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval Neves
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