A Virgem Maria sob a ótica de
Santo Agostinho
Entre todas as mulheres, Maria é
a única a ser ao mesmo tempo Virgem e Mãe, não somente segundo o espírito, mas
também pelo corpo. Ela é mãe conforme o espírito, não d’Aquele que é nossa
Cabeça, isto é, do Salvador do qual ela nasceu ,espiritualmente. Pois todos os
que nele creram – e nesse número ela mesma se encontra – são chamados, com
razão, filhos do Esposo (filii sponsi) (Mt 9,15). Mas, certamente, ela é mãe de
seus membros, segundo o espírito, pois cooperou com sua caridade para que
nascessem os fiéis na Igreja – os membros daquela divina Cabeça – da qual ela
mesma é, corporalmente, a verdadeira mãe. Convinha, pois, que nossa Cabeça, por
insigne milagre, nascesse segundo a carne de uma virgem, dando a entender que
seus membros, que somos nós, haviam de nascer segundo o Espírito dessa outra
virgem que é a Igreja. Somente Maria, portanto, é mãe e virgem, no espírito e
no corpo. É Mãe de Cristo e também Virgem de Cristo.
Santo Agostinho
Comentário:
Maria não somente gerou a nossa Cabeça –
Cristo -, mas também aos membros que formam seu corpo místico. Está enunciado
aí um dos princípios mais fecundos da mariologia, e que tem gozado de
influencia profunda na literatura mariana.
A cooperação de Maria na obra da
Redenção faz dela, espiritualmente, a mãe dos cristãos e membro supereminente
da Igreja. Cf. a constituição dogmática Lumen Gentium (cap. VIII,53), em que
vem citada esta importante passagem. E também na Redemptoris Mater, III, 2,42,
nota 120. Ainda no Catecismo da Igreja católica, n. 963, é feita especial
referência a este texto do De sancta virginitate.
[A Virgem Maria - Cem textos marianos
com comentários - 4ª. ed.Trad. Nair de Assis Oliveira. - São Paulo: Paulus,
2007, p. 55]
Referindo-se à importância do pensamento
agostiniano para o desenvolvimento e sedimentação da mariologia, afirma Ir.
Nair de Assis Oliveira, Cônega de Santo Agostinho e Assessora do Centro de
Estudos Agostinianos, no texto introdutório ao livro A Virgem Maria – Cem
textos marianos com comentários: Nossa mariologia católica atual deve
muitíssimo ao grande mestre Agostinho. Suas reflexões contribuíram de maneira
decisiva para a difusão do conhecimento e da devoção a Maria em toda a Igreja.
A tal ponto que podemos afirmar, sem receio de exagero, que a substância do
culto mariano de nossos dias encontra na obra agostiniana uma de suas mais
convincentes e calorosas explicitações (p. 16).
Além dos aspectos acima apontados, a
beleza da escrita agostiniana encanta a cada trecho, a cada linha. Quase sempre,
quando o tema é Maria, os escritores fazem vir a lume o que há de mais poético
em si mesmos. Parece que apenas o intuito de escrever sobre a Virgem Maria já
constitui garantia suficiente de que dali brotará um texto poético. No caso de
santo Agostinho, o leitor que se permitir o prazer de folhear o livro aqui
comentado será agraciado com alguns textos de extrema beleza, como o que cito a
seguir:
Exultem de gozo os homens! Exultem de
alegria as mulheres! Cristo nasceu homem e nasceu de uma mulher. Nele, ambos os
sexos estão dignificados. Que se voltem para o segundo homem todos os que
haviam sido condenados com o primeiro (Adão). Uma mulher nos induzira à morte.
Uma outra trouxe-nos a Vida. Dela nasceu um filho, semelhante à carne de pecado
(Rm 83,). Assim, pois, não culpemos a carne, mas para que viva a natureza,
morra a culpa. Pois nasceu sem pecado Aquele em quem devia renascer o que se
achava na culpa (p. 84).
IGREJA VIRGINAL: MODELO DE MARIA
Agostinho, em diversas vezes, identifica as
qualidades da Igreja, de ser “mãe e virgem”, afirmando que esta teve como
modelo a Virgem Maria. Não faz esta relação apenas quanto ao aspecto corporal,
mas também para ele Maria é mãe e virgem no aspecto espiritual: com a diferença
de que a Igreja o é apenas segundo o espírito.
“(...) Ora, já que a Igreja universal é uma virgem
desposada a um único esposo, que é Cristo, como diz o Apóstolo (2Cor 11,2),
quão dignos de honra não hão de ser aqueles seus membros que guardam, em sua
carne, o que toda a Igreja guarda na fé? Ela, que toma como modelo a
mãe de seu esposo e Senhor. Pois a Igreja também é mãe e virgem.(...)”
(De Virginitate, 2)
“(...) Com efeito, há um matrimônio espiritual
no qual temos que viver com o máximo de castidade, uma vez que Cristo
concedeu à sua Igreja, no espírito, o que sua mãe possuía no corpo: ser mãe e
virgem. (...)” (Sermão 138,9).
“(...) Maria era virgem antes da concepção e
depois do parto. (...) A Igreja, pois, imita a mãe do seu Senhor:
uma vez que corporalmente não pode ser mãe e virgem ao mesmo tempo, o é no
espírito. (...)” (Sermão 191 2,3)
“(…) Somente Maria, portanto,
é mãe e virgem, no espírito e no corpo. É Mãe de Cristo e também
Virgem de Cristo. Mas a Igreja, nos santos que hão
de possuir o reino de Deus, é, segundo o espírito, toda ela mãe e
toda ela virgem de Cristo. (…)” (De Virginitate 6,6)
IGREJA, NOSSA MÃE: ASSIM COMO MARIA
Para Santo Agostinho, Maria é certamente mãe dos
membros do corpo de Cristo:
"(...) É porque, entre todas
as mulheres, Maria é a única a ser ao mesmo tempo virgem e mãe, não somente pelo
espírito, mas também pelo corpo. Ela é mãe conforme o espírito,
não de quem é nossa Cabeça, isto é, do Salvador do qual ela nasceu
espiritualmente. Pois todos os que nele creram — e nesse número ela mesma se
encontra — são chamados com razão “filhos do esposo” (Mt 9,15). Mas
ela é certamente a mãe de seus membros — que somos nós — porque cooperou com
sua caridade para que nascessem os fiéis na Igreja, os membros desta
divina Cabeça, da qual ela mesma é a verdadeira mãe conforme a
carne. (...)" - (De Virginitate 6,6)
Posto que, se a Igreja dá à luz aos membros de
Cristo, é grandíssima a semelhança com Maria:
“(...) Assim, a Igreja é virgem. É virgem e
permanece assim. Guarde-se do sedutor, para evitar a corrupção. A Igreja é
virgem. Talvez você me diga: “Se é virgem, como dá luz a filhos?”, ou, se não
dá à luz a filhos: “Como é que nós podemos nascer de suas entranhas?”.
Respondo: «É virgem e dá à luz. Imita a Maria, que deu
à luz ao Senhor». Por acaso Santa Maria não deu à luz sendo e
permanecendo virgem? Assim também a Igreja: dá à luz e é virgem. E, se você
pensar nisso atentamente, dá à luz a Cristo, posto que os batizados são seus
membros. Disse o apóstolo: vocês são o Corpo de Cristo e seus membros. Se,
pois, dá à luz aos membros de Cristo, a semelhança com Maria é grandíssima.(...)”
(Sermão 213,7)
Já que para ele, assim como a Igreja, Maria é mãe
da unidade entre muitos:
“(...) Forma (a
Igreja) aos povos, mas todos são membros de um só, de quem
ela é corpo e esposa, sendo também nisto semelhante àquela virgem
que também é mãe da unidade entre muitos. (...)” (Sermão 192, 2)
Gerando a cada dia novos membros do corpo de
Cristo:
“(...) Ele nasceu da Virgem Maria, como toda a
Igreja confessa, que à imitação da mãe de Cristo, sendo virgem, gera
a cada dia novos membros de Cristo. Você pode ler, se te agradar,
acerca da virgindade de Maria em minha carta a Volusiano, varão ilustre, a quem
cito com muita estima.(...)”. (Enchiridion, 34)
MARIA: FIGURA E MEMBRO ÍMPAR DA IGREJA
Nota-se, logo abaixo, que Agostinho nos diz
(conforme os ensinos do Concílio de Éfeso) que Maria não é mãe da natureza
divina de Cristo. Ele também nos diz, em consonância com o ensino da Igreja,
que ela é um membro do corpo de Cristo:
“(...) Maria, portanto, ao fazer a vontade de
Deus, é corporalmente só a mãe de Cristo, mas espiritualmente é também
sua mãe e irmã.(...)” (De Virginitate, 5)
Agostinho não fica por aí. Ele ainda tece elogios e
paralelos entre Maria e a Igreja, reconhecendo a supereminência e singularidade
que ela ocupa na Igreja:
"(...) Maria é parte da Igreja, membro
santo, membro supereminente. (...)". (Sermão 72A,7).
Proclamando abertamente, por fim, que ela é figura
da Igreja:
"(...) A Virgem Maria assumiu a
dianteira na Igreja enquanto é figura dela. Por que - vos pergunto
- Maria é mãe de Cristo ou porque deu à luz aos membros de Cristo? Vocês,
a quem me dirijo, sois membros de Cristo: quem deu à luz a vocês? Ouçam a voz
de vosso coração: A mãe Igreja! Esta mãe santa e honorável, assim
como Maria, dá à luz e é virgem.(...)" - (Sermão 72A, 8.)
IGREJA SEM PECADO, MARIA SEM PECADO
Levando em conta que para Agostinho Maria é
claramente figura da Igreja, ao possuir características desta, quando
desdobrarmos a teologia de santo Agostinho sobre a pureza de Maria com relação
ao pecado, verificamos que há também neste ponto um paralelo com a Igreja:
“(...)Devemos excluir a santa Virgem Maria, a
respeito da qual eu não gostaria de levantar qualquer questão quando o assunto
é pecado, em honra ao Senhor, porque Dele sabemos qual
abundância de graça para vencer o pecado em cada detalhe foi conferido a
ela que teve o mérito de conceber e suportar aquele que, sem dúvida, não
tinha pecado.(...)” (Sobre a natureza e a graça, 36)
Para ele, quando se trata de pecado, devemos excluir
o “membro santo” da Igreja (cf. Sermão 72A,7), porque sabemos que uma
“abundância de graça foi conferida a ela” (cf. Sobre a natureza e a graça, 36).
Ora, também dizem as Escrituras que a Igreja é
santa, irrepreensível:
“(…) Para a apresentar a si mesmo Igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa
e irrepreensível.(…)” (Efésios 5,27)
CONCLUSÕES
Depois de observarmos as palavras de Agostinho
sobre a imagem da Igreja que se revela em Maria, como que num espelho, damos
razão ao que diz o então cardeal Ratzinger:
“(...) no tempo dos Padres foi esquematizada
na eclesiologia toda mariologia, embora sem nomear o nome da Mãe do Senhor:
a Virgo Ecclesia, aMater Ecclesia, a Ecclesia
immaculata, a Ecclesia assumpta – tudo o que mais tarde
será mariologia foi primeiro pensado como eclesiologia. (...)” (RATZINGER,
2004).
Com a diferença que Agostinho deixou explícita em
sua eclesiologia a relação desta com Maria, evidenciando o que há séculos a
teologia católica vem fazendo. Também, o teólogo Hans Urs von Balthasar
salienta isto:
“(...) Evidentemente, os Padres vêem também a
parte de dissemelhança própria desta analogia: somente Maria gerou
corporalmente o Filho de Deus; os outros cristãos devem imitá-la fazendo isso
espiritualmente (é Agostinho quem mais insiste nesta dissemelhança na
semelhança). Mas vêem-se obrigados a relativizar tal parede divisória –
por si mesma insuperável –, quando consideram que Maria é o tipo da
Igreja não como sua simples “prefiguração” (assim como os tipos veterotestamentários
prefiguravam as verdades da nova aliança), mas como seu modelo original, ou
seja, como a “ideia” realizada de maneira perfeita e insuperável, e por esta
razão ela é a única a corresponder de maneira adequada e congruente à Igreja
como “cooperadora” de Cristo também na ação pessoal que desenvolve no interior
da comunidade dos santos. (...)” (BALTHASAR, 1979).
Fica demonstrado nestas poucas palavras que Santo
Agostinho, longe de ter um pensamento protestante ou acatólico, expunha de
maneira magistral definições mariológicas que a Igreja irá utilizar através dos
séculos, até nossa época.
NOTAS
[1] S. Ambrósio, Expos. U. II, 7: PL
15, 1555.
[2] Cfr. Ps. - Pedro Dam., Serm. 63: PL
144, 861 AB.-Godofredo de S. Victor. In nat. B. M., Ms.
Paris, Mazarine, 1002, fol. 109 r. - Gerhohus Reich, De gloria et
honore Filii hominis, 10: PL 194, 1105 AB.
REFERÊNCIAS
BALTHASAR, Hans Urs von;
RATZINGER, Joseph Aloisius. Maria a primeira Igreja. Gráfica de Coimbra, 2004. p.23.
BALTHASAR, Hans Urs von; et al. O Culto a
Maria Hoje, subsídio teológico-pastoral elaborado sob a direção de Wolfgang
Beinert; (traduziu Luiz João Gaio; revisão de Luiz A. Miranda).
– São Paulo: Ed. Paulinas, 1979, p. 319.
LUBAC, Henri de. Meditación
sobre la Iglesia, Ed. Encuentro, Madrid, 1989, p. 338.
Fonte: OLIVEIRA,
L.H. Santo Agostinho e Maria como o tipo e figura da Igreja. Disponível em: http://apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/842-santo-agostinho-e-maria-como-o-tipo-e-figura-da-igreja
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval Neves
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