A Cidade de Deus
Por Por Felipe Pimenta
Santo Agostinho sempre foi considerado
um teólogo de inspiração platônica mas, quando lemos sua obra principal,
A Cidade de Deus, e a
comparamos com a sobriedade das metafísicas de Plotino, Proclo, Jâmblico e
Damáscio, vemos que o seu platonismo fica já obscurecido pela teologia bíblica.
Agostinho dá um tom excessivamente bombástico e emocional ao seu texto, talvez
porque misture a uma tentativa de filosofar teologia e história.
Este caráter
histórico de seu texto é um dos grandes pontos fracos do Cristianismo, e mesmo
filósofos muçulmanos criticam este aspecto da religião cristã. Quando a
filosofia é diminuída para dar espaço a uma religião que pretende ser
histórica, e que vê seus antecessores como meros pretextos para seu
aparecimento, a razão cede lugar para o emocional.
Percebe-se muito bem que Agostinho
conhecia Platão apenas por vias indiretas, mais por leituras de Plotino e
Porfírio. O que domina seu texto é a Bíblia e a aplicação de um método
histórico. Ele com facilidade zomba de algumas crenças platônicas como a
metempsicose, da preexistência da alma e da existência dos daimons.
Neste ponto tenho que criticar a
tradução feita pela editora Vozes que não manteve o significado original em
grego. Fica parecendo que os filósofos antigos defendiam culto aos “demônios”
no sentido pervertido pelos cristãos, mas o que eles acreditavam eram em
mensageiros parecidos com os anjos, podendo ser bons ou maus.
Como na filosofia platônica e em geral
no pensamento grego não havia espaço para uma noção de criação a partir do
nada, mas o mundo era visto como eterno como nossa alma, muito do que Agostinho
tem para oferecer é a novidade, rejeitada pelos neoplatônicos, de um Deus que
cria a partir do nada.
Mais ainda: de um Deus que intervém
na História. A Cidade de Deus é oposta à Cidade dos Homens. Não que Agostinho
pretendesse que essa cidade celeste fosse fundada na Terra, mas sim que a
cidade dos homens vive pela carne ao longo da História, ao mesmo tempo que a
Cidade Celeste é a dos homens que têm noção da sua pequenez, desprezam os bens
da Terra e buscam a paz de Deus. Não deixa de ser uma noção bela, mas buscar
ver nos atos da história humana sinais destas cidades é muito enganador.
Boa parte do início do livro é dedicado
à história de Roma; nela, Agostinho busca defender os cristãos das acusações
feitas pelos pagãos de que Roma era forte enquanto cultuava os Deuses, e tornou-se
fraca e acabou por ser saqueada em 410 por causa do fortalecimento do
Cristianismo. Agostinho vai oferecer inúmeros exemplos de uma suposta fraqueza
dos Deuses romanos que teriam sido inúteis em defender sua cidade e seus
protegidos. O que se pode provar com os exemplos históricos de Agostinho é
nada, apenas que ele tinha um bom conhecimento da história do Império.
A todo momento ele atribui a denominação
de “demônios” às Divindades romanas, num evidente abuso de linguagem. Os abusos
se repetem com seu uso de apóstrofes repetidas, o que fica parecendo que ele
está gritando.
Aparentemente para Agostinho, a
humanidade que detinha a luz era somente a dos judeus. Todos os outros povos
estavam abandonados à própria sorte, o que dificulta sua doutrina da Providência.
Ao mesmo tempo em que Roma era dominada por demônios, também misteriosamente
preparava o caminho para Cristo e seu Evangelho. Igualmente, os judeus, que
detinham o monopólio de Deus até aquele momento, preparavam o terreno para a
Encarnação.
O método histórico aparece aqui de
maneira óbvia. Todos os que vieram antes de mim foram somente instrumentos mais
ou menos adequados para que eu aparecesse. Séculos depois, o Cristianismo
viu-se diante de um desafio formidável, e no qual todas as suas tentativas de
resposta falharam: o nascimento do Islamismo. Se eu sou o auge da Revelação,
como pode alguém vir depois de mim? Todos que estão dominados por este tipo de
pensamento são parecidos, por isso um filósofo como Hegel podia achar que tinha
a chave para a explicação de quase tudo.
A filosofia, para Agostinho, como para
Tomás de Aquino, é um acessório válido apenas para confirmar a Bíblia. Se a
filosofia vai mais longe do que a Igreja permite, ela será descartada com
facilidade. Agostinho também vai utilizando sua escrita exagerada para
descartar a presença dos Deuses antigos pela sua suposta ineficiência
histórica.
Como o método é traiçoeiro, nas idades
moderna e contemporânea, também o Deus cristão foi considerado descartável, e
foi feita uma acusação clássica contra Ele: onde estava Deus no holocausto
judeu, ou nos crimes do comunismo, no genocídio armênio, etc..? Religiões como
o Budismo e o Hinduísmo, assim como a filosofia de Platão ou Pitágoras, não
seriam abaladas por questionamentos como esse.
Colocando o pensamento na metafísica,
onde não há quase espaço para emoções, e vendo as coisas sub specie aeternitatis, a História
em si torna-se de pouco valor. Na Cidade
de Deus, tudo parece querer ser explicado desde a Criação até o
Juízo Final. Não existe filosofia aqui, somente teologia. Para um platônico,
nem o universo teve início nem terá, tampouco, fim. A bondade Divina é grande
demais para destruir àquilo mesmo que Ela construiu, e o universo está, a todo
momento, sendo energizado pela Divindade para que se renove sempre.
De um ponto de vista metafísico e da
eternidade, a História em si só demonstra que o homem é o mesmo em todas as
épocas. Se Deus resolvesse agir mais em determinado momento e não em outros, e
mesmo deixasse povos inteiros nas mãos de Satã, onde estaria Sua Providência?
O esquema Bíblico é sem sentido para os
Orientais e para os pagãos. Agostinho não pode conceber uma humanidade que
tenha existido antes de Adão nem que o mundo seja mais antigo do que diz o
Gênesis. Os animais têm de servir ao homem e no final haverá um apocalipse
devastador. Muitas ideologias modernas tiveram origem no historicismo cristão.
Só que a História precisa sempre decepcionar aos homens e mulheres.
Os resultados de uma presença de um Deus
único no mundo, ou de uma luta de classes ou de uma suposta evolução humana,
nunca são evidentes por si mesmos, e o próprio Platão colocaria este tipo de abordagem
em um nível baixíssimo.
Se o reino da matéria já é instável ao
extremo, tente imaginar o da ação dos homens?
Os Constantinos e os Teodósios de
Agostinho são tão criminosos quanto governantes pagãos odiosos. Deus não se
revelou mais ou menos nos sábios da Antiguidade do que nos santos do
Cristianismo.
Quem poderá colocar limites à linguagem
que a Divindade usa?
Por causa disso, apesar da tentativa
grandiosa de Agostinho, o Baghavad
Gita, as Enéadas de
Plotino ou a filosofia de Platão vão sempre
falar mais ao íntimo da humanidade do que sua Cidade de Deus.
Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Fevereiro de 2019
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval Neves
Responsabilidade: PASCOM Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - Vila Hamburguesa – SP
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