A paz segundo Santo Agostinho
A paz de todas as coisas é a
tranquilidade da ordem” – Santo Agostinho, em ‘A Cidade de Deus’ (De civitate Dei),
Livro XIX, Cap. 13, I.
Ninguém discute o fato de que a
paz é um estado desejável. O que se discute sem parar é como alcançar a paz.
Até mesmo com a guerra. O que pouco se discute é o que é a paz. Sem responder a
isso não é possível responder o resto. A paz é uma consequência, e não um
slogan bonito a ser forçado, resultando, com sorte, em uma paz aparente e
frágil. Santo Agostinho nos oferece o caminho para a paz, o mesmo caminho que
nos leva à Cidade de Deus.
A paz do corpo consiste no
arranjo proporcional de suas partes. A paz da alma irracional consiste no
repouso harmonioso de seus apetites (instintos), enquanto a paz da alma
racional consiste na harmonia entre o conhecimento e a ação. A paz do homem com
Deus consiste na bem ordenada obediência da fé à lei eterna. Enquanto a paz
entre os homens é um acordo bem ordenado (De Civ. Dei XIX, 13 §1).
Segundo Santo Agostinho, para
obter a verdadeira paz, o homem se sujeita a Deus por obediência perante o que
é eterno. Uma convicção que o bispo de Hipona deixa clara por toda a sua obra,
mas especialmente no testemunho de sua própria vida. A paz veio para ele apenas
com a entrega total a Deus. Esse estado de desarmonia e luta contra o Senhor
trouxe a ele nada a não ser dor e confusão. Para alguém com a sua poderosa
mente, isso significa que ele sabia bem a dor que tinha causado a outros
enquanto espalhava o erro, seja pelo mau exemplo ou suas palavras.
Da relação com Deus até a
família. Sendo a economia familiar um reflexo da Trindade, Santo Agostinho vê a
paz em família da mesma forma, com alguns liderando e outros obedecendo. Mais
uma vez, não como um tirano e um vassalo, mas como quem sabe ter qualidades que
o outro não possui, e que igualmente o reconhecimento das qualidades
complementares no próximo, e a vivência dessa diferença pode resultar na ordem
necessária para a paz.
Ordem, segundo Santo Agostinho, é
a distribuição das coisas em seus devidos lugares. Em termos sociais, essa
distribuição não precisa ser igualitária, mas precisa ser justa, de forma que
mesmo o miserável que não conhece a paz da mesma forma que outros, ainda é
parte da ordem. Logo, eles também vivem na paz. Alguma intranquilidade eles
terão, sem dúvida. É nosso dever, através da caridade, olhar pelos irmãos em
necessidade. Mas Santo Agostinho não vê o mundo, a cidade dos homens, como o
provedor da felicidade. Apenas em Deus o homem terá felicidade e paz absoluta
no amor do Pai. No mundo, os miseráveis ainda fazem parte da proteção da ordem
se tudo for distribuído segundo a ordem natural das coisas, e não uma ordem
forçada. A situação é ajustada para a capacidade individual e o que cada um
trás ao mundo. Sendo assim, ainda há ordem.
Reconhecendo que mesmo os pobres
e os doentes fazem parte da ordem natural das coisas, a paz ainda reina, pois
fora dessa relação não há ordem e a paz seria impossível. Nesse caso, numa
sociedade desordenada mesmo quando diz buscar ordem, todos seriam miseráveis e
não haveria paz.
Passando da relação com Deus,
pela família e até a sociedade, Santo Agostinho nos mostra que é possível,
embora improvável, haver vida sem dor. Mas não é possível haver dor sem vida.
Da mesma forma, é possível haver paz sem a guerra, mas não é possível haver
guerra sem haver paz, ou a guerra seria uma forma de vida, e não um estado
transitório.
Voltando seus olhos a Deus,
Agostinho prepara a sua conclusão sobre essa questão. Seguindo esse raciocínio,
existe uma natureza em que o mal não pode existir, mas não há uma natureza em
que o bem não exista. Logo, nem mesmo a natureza do demônio é maligna, pois ele
foi criado anjo. O que acontece é a perversão da natureza pelo pecado. O
demônio não segue a verdade, mas mesmo ele não pode escapar do julgamento da
Verdade. Satanás vive, mesmo contra a sua vontade, inserido na tranquilidade da
ordem, pois não pode escapar daquele que ordena todas as coisas (§2).
A conclusão é inescapável. É pela
perversão do pecado que, assim como o demônio, a corrupção se alojou em nossa
natureza outrora livre dessa mancha. É pela corrupção do pecado que aceitamos a
desordem. No reflexo de nossa desordem, o mundo não encontra a paz. Apenas a
paz em nossas almas pode trazer a paz ao mundo, e apenas Deus pode trazer paz
às nossas almas.
Deus não puniu o demônio pela sua
natureza, mas pela corrupção que ele abraçou e o mal que ele cometeu e comete.
Da mesma forma, é pela nossa insistência em não nos voltar a Deus e buscar a
cura para a nossa alma que somos punidos. Nossa natureza reflete a imagem e a
semelhança do Senhor, e Ele nos quer como parte da Sua família. Basta voltarmos
as nossas paixões e intelectos a Ele, sabendo que a família, a começar pela
divina, possui uma ordem.
A paz na terra não será
plenamente alcançada. A paz verdadeira só existe, finalmente, na natureza que é
perfeita e infinitamente justa e ordenada, Deus. Apenas na ‘Cidade de Deus’ há
paz. Na ‘cidade dos homens’, a paz relativa é alcançada mantendo o olhar em
Cristo como o único caminho a Deus.
A falácia da ‘justiça social’
pela via política não traz a paz, enquanto a paz em Cristo pode trazer ordem
tal como ela é possível na terra. Não se força a natureza do homem em um
simulacro de paz, uma falsa ‘Cidade de Deus’ na terra. Apenas a harmonia que a
submissão a Deus traz pode ordenar o homem e conduzi-lo à paz. Inevitavelmente,
no caminho para a santidade está a melhora da situação de todos, pois a nossa
submissão a Deus se mostra antes em nossas obras, e a caridade é a primeira
delas. A caridade não é apenas a esmola, mas a evangelização e o cuidado com a
alma. Obviamente, o cuidado com o corpo doente e necessitado do próximo fazem
parte da caridade, mas eles são apenas o reflexo da entrega a Deus, perceba a
pessoa ou não.
A devida ordenação que traz a paz
começa e termina em Cristo. É admitindo que existe uma ordem natural, e não
subvertendo a verdade com ideologias de falso igualitarismo, que encontraremos
a paz. O homem e a mulher não são a mesma coisa, e apenas juntos para viver o
diferente pode haver a harmonia da ordem. Da mesma forma, os homens não são
iguais e vivem pelo que produzem. O mais forte ajuda o mais fraco, e os que
caíram são levantados pelos que ainda estão de pé ou já se levantaram. Sem a
possibilidade de queda não há amor, pois, o amor ao próximo não se prova
retirando dele a sua liberdade. Nem para substitui-la por uma pretensa
plenitude na terra. Só há amor se você puder negá-lo. Ao negá-lo,
arrepender-se. Arrependido, se reconciliar. Reconciliado, viver a verdade em fé
e obras.
Nada na ‘cidade dos homens’ nos
trará a paz, a não ser ordenar nossas vidas a Deus. Mesmo assim, essa paz não é
a verdadeira, aquela vivida apenas na Cidade de Deus, a Jerusalém Celestial. O
que podemos ter certeza de que NÃO nos trará nada a não ser a dor é o
distanciamento de Deus e a substituição da ordem natural por uma falsificação
criada pelo homem. Não importa quão belo o embrulho, uma falsificação ainda é
uma cópia imperfeita do original. Como disse São Tiago: “a religião pura e sem mácula aos olhos de Deus Pai é esta: visitar
os órfãos e as viúvas em suas aflições, mas resguardar-se da corrupção deste
mundo” (Tg 1,27).
Somos peregrinos a caminho da
Cidade Deus, tudo o que temos que fazer, como escreveu J.R.R. Tolkien, é saber
o que fazer com o tempo que nos é dado. Essa viagem não é uma de “autodescobrimento”,
mas uma jornada para descobrir o amor de Deus, a única coisa que traz a
verdadeira paz, pois o Senhor revela quem somos e nos envia em missão.
Por fim, o mesmo Tolkien escreveu
que o título da jornada é “lá e de volta outra vez”, pois a jornada das grandes
histórias é um reflexo da peregrinação que narra Santo Agostinho. É a jornada
que começa e termina em Deus, e apenas nEle, apenas na Cidade de Deus, estamos
realmente em casa. Apenas Deus, “alfa e ômega, primeiro e único,
começo e fim” (Ap 22,13), Pai
perfeito e amoroso que enviou Seu Filho para sentir todas as nossas dores, para
morrer e atirar sobre si mesmo os nossos pecados, pode nos mostrar a paz. E Ele
já mostrou! Naquele que nos disse tudo para que nEle tenhamos paz, pois apesar
das aflições passageiras, Ele venceu o
mundo (Jo 16,33)!
Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Janeiro de 2020
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval NevesResponsabilidade: PASCOM Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - Vila Hamburguesa – SP
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