AGOSTINHO, LEITOR DA ESCRITURA.
Embora não tenha sido um tradutor, como Jerônimo
havia sido, o bispo hiponiano foi um ilustre comentador dos textos sagrados.
Portanto se gabaritou a ser um grande hermeneuta, interpretando o sentido do
texto. E isso ocorreu a partir de sua conversão, num momento pessoal singular,
que o levou, primeiramente a ser um leitor assíduo e apaixonado das escrituras.
Neste relato, do próprio Agostinho, percebe-se a intensidade deste momento
decisivo que fundamentou sua carreira hermenêutica:
“Por quanto tempo, por quanto tempo
direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora à
minha indignidade? ”Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do
coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um
menino ou menina repetindo continuamente uma canção: “Toma e lê, toma e lê”.
Mudei de semblante e comecei com a
máxima atenção a observar se se tratava de alguma cantilena que as crianças
gostam de repetir em seus jogos. Não me lembrava, porém, de tê-la ouvido antes.
Reprimi o pranto e levantei-me.
A única interpretação possível, para
mim, era a de uma ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras
que encontrasse. Tinha ouvido que Antão, assistindo por acaso a uma leitura
evangélica, sentiu um chamado, como se a passagem lida fosse pessoalmente
dirigida a ele: Vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos
céus. Depois, vem e segue-me. E logo, através dessa mensagem, converteu-se a
ti.
Apressado, voltei ao lugar onde Alípio
ficara sentado, pois, ao levantar-me, havia deixado aí o livro do Apóstolo.
Peguei–o, abri e li em silêncio o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu
olhar: Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas
rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis
satisfazer os desejos da carne.
Não quis ler mais, nem era necessário. Mal
terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da
dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz de certeza.
(SANTO AGOSTINHO. Confissões. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, p. 222-223.).
O que chama a atenção neste fato é o convite de uma
voz misteriosa a Agostinho para ele ler, mas não como um livro qualquer, mas
como um livro que, quando lesse suas primeiras palavras com o coração, sua vida
tomaria outro rumo – o que de fato ocorreu. Fica claro aqui este primeiro aspecto
basilar de toda hermenêutica de Agostinho que diz respeito à leitura.
A partir deste envolvimento profundo de Agostinho
com a leitura das escrituras, uma enorme paixão pelo estilo da Bíblia inunda
seu coração, ditada pelo Espírito.
Até mesmo aquelas objeções que tinha à Palavra,
baseadas em incongruências entre o texto e os seus discursos e o testemunhos da
Lei e dos Profetas, que o bispo julgava existir, começaram a se esvanecer.
Pôde, inclusive, perceber que todas as virtudes que outrora havia encontrado
nos textos platônicos estavam presentes nos textos bíblicos.
Contudo, admitia que não podia ouvir nestes textos
do filósofo grego aquele que exclama: “Vinde a Mim, vós, os que estai cansados
e sobrecarregados”, pois “escondestes estas coisas aos sábios e entendidos, e
as revelastes aos humildes”. (Mt 11.28; 11.25)
Jornal Online “A Voz de
Lourdes” – Setembro de 2019Compilação e Edição: Sérgio
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