«Sobre a Ressurreição
de Cristo, segundo São Marcos»
A ressurreição de nosso
Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias, como é costume, segundo cada um dos
livros do santo Evangelho.
Na leitura de hoje
ouvimos Jesus Cristo censurando os discípulos, primeiros membros seus,
companheiros seus: porque não criam estar vivo aquele mesmo por cuja morte
choravam. Pais da fé, mas ainda não fiéis; mestres - e a terra inteira haveria
de crer no que pregariam, pelo que, aliás, morreriam - mas ainda não criam. Não
acreditavam ter ressuscitado aquele que haviam visto ressuscitando os mortos.
Com razão, censurados: ficavam patenteados a si mesmos, para saberem o que
seriam por si mesmos os que muito seriam graças a ele.
E foi deste modo que
Pedra se mostrou quem era: quando iminente a Paixão do Senhor, muito presumiu;
chegada a Paixão, titubeou. Mas caiu em si, condoeu-se, chorou, convertendo-se
a seu Criador.
Eis quem eram os que
ainda não criam, apesar de já verem. Grande, pois, foi a honra a nós concedida
por aquele que permitiu crêssemos no que não vemos! Nós cremos pelas palavras
deles, ao passo que eles não criam em seus próprios olhos.
A ressurreição de
nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos que crêem em Jesus, e este é o
mistério da sua Paixão e Ressurreição, que muito devíeis conhecer e celebrar.
Porque não sem motivo desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo que a fonte
da vida, de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe convinha.
Por que a Cristo não convinha a morte.
De onde veio a morte?
Vamos investigar a
origem da morte. O pai da morte é o pecado.
Se nunca houvesse
pecado ninguém morreria. O primeiro homem recebeu a lei de Deus, isto é, um
preceito de Deus, com a condição de que se o observasse viveria e se o violasse
morreria. Não crendo que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a
verdade do que dissera quem lhe dera a lei.
Desde então, a morte.
Desde então, ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a morte
temporal a eterna morte. Sujeito. a essa condição de morte, a essas leis do
inferno, nasce todo homem; mas por causa desse mesmo homem, Deus se fez homem,
para que não perecesse o homem. Não veio, pois, ligado às leis da morte, e por
isso diz o Salmo: "Livre entre os mortos" (Nota 1).
Concebeu-o, sem
concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe à luz, Virgem permaneceu. Ele
viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa, comungava conosco no castigo
mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus Cristo veio
morrer, mas não veio pecar; comungando conosco no castigo sem a culpa, aboliu
tanto a culpa como a castigo. Que castigo aboliu? O que nos cabia após esta
vida. Foi assim crucificado para mostrar na cruz o fim do nosso homem velho; e
ressuscitou, para mostrar em sua vida, como é a nossa vida nova. Ensina-o o
Apóstolo: "Foi entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa
da nossa justificação" (Nota 2).
Como sinal disto,
fora dada outrora a circuncisão aos patriarcas: no oitavo dia todo indivíduo do
sexo masculino devia ser circuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de
pedra: porque Cristo era a pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação
da vida carnal a ser realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois
o sétimo dia da semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo
dia da semana. Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por
que, ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.
É nessa esperança que
vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer: "Se ressuscitastes com Cristo..."
(Nota 3).
Como ressuscitamos,
se ainda morreremos? Que quer dizer o Apóstolo: "Se ressuscitastes com
Cristo?" Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas
falava aos vivos, aos que ainda não morreram... os quais, contudo,
ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o que ele
afirma: "Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas que são do alto,
onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o
que está sobre a terra. Porque estais mortos!".
É o próprio Apóstolo
quem está falando. Ora, ele diz a verdade, e, portanto, digo-a também eu... E
por que também a digo? "Acreditei e por causa disto falei" (Nota 4).
Se vivemos bem, é que
morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu, também não
ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que não morra.
Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para não ser condenado.
"Se
ressuscitastes com Cristo", repito as palavras do Apóstolo, "procurai
o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é
do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a vossa vida está escondida com
Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também
aparecereis com ele na glória". São palavras do Apóstolo. A quem ainda não
morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda vive mal, digo-lhe que se converta. Se
vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem, ressuscitou.
Mas, que é viver bem?
Saborear o que está no alto, não o que sobre a terra. Até quando és terra e à
terra tornarás? Até quando lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te
tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo: "os inimigos dele lamberão a
terra" (Nota 5).
Que éreis vós? Filhos
de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.
Os filhos dos homens,
até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais a
mentira?
Que mentira buscais?
O mundo.
Quereis ser felizes,
sei disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor,
sacrílego, manchado por todos os vícios, soterrado por todas as torpezas e
maldades, mas não queira ser feliz. Sei que todos vós quereis viver felizes,
mas o que faz o homem viver feliz, isso não quereis procurar.
Tu, aqui, buscas o
ouro, pensando que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz feliz. Por que
buscas a ilusão? E com tudo o mais que aqui procuras, quando procuras
mundanamente, quando o fazes amando a terra, quando o fazes lambendo a terra,
sempre visas isto: ser feliz.
Ora, coisa alguma da
terra te faz feliz. Por que não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás
de ser feliz? "O filhos dos homens, até quando sereis pesados de coração,
vós que onerais com as coisas da terra o vosso coração?" (Nota 6).
Até quando foram os
homens pesados de coração? Foram-no antes da vinda de Cristo, antes que
ressuscitasse o Cristo. Até quando tereis o coração pesado? E por que amais a
vaidade e procurais a mentira?
Querendo tornar-vos
felizes, procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o que desejais,
é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz?
Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante (no versículo do
Salmo): "Até quando sereis pesados de coração? Por que amais a vaidade e
buscais a mentira?" "Sabei" - o quê? - "que o Senhor
engrandeceu o seu Santo" (Nota 7).
O Cristo veio até
nossas misérias, sentiu a fome, a sede, a fadiga, dormiu, realizou coisas
admiráveis, padeceu duras coisas, foi flagelado, coroado de espinhos, coberto
de escarros, esbofeteado, pregado no lenho, transpassado pela lança, posto no
sepulcro; mas no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a
morte. Eis, tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto
quis o Pai engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a
honra de se assentar no Céu à sua direita. Mostrou-te o que deves saborear se
queres ser feliz, pois aqui não o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz,
ninguém o pode.
Boa coisa a que
desejas, mas não nesta terra se encontra o que desejas. Que desejas? A vida
bem-aventurada. Mas aqui não reside ela.
Se procurasses ouro
num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não existência, haveria de
te dizer: "Por que estás a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na
qual hás de apenas descer, na qual nada encontrarás!"
Que responderias a
tal conselheiro? "Procuro ouro". Ele te diria: "Não nego que
exista o que desejas, mas não existe onde o procuras".
Assim também, quando
dizes: "Quero ser feliz" . Boa coisa queres, mas aqui não se
encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele
encontrou nesta região da tua morte: vindo de outros paramos, que achou aqui
senão o que existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo do
que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que
encontrou em tua morada.
Contudo, convidou-te
à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos, onde ele mesmo é o pão.
Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela, não só não rejeitou a
tua mesa, mas prometeu-te a sua.
E que nos diz ele?
"Crede, crede
que chegareis aos bens da minha mesa, pois não recusei os males da vossa".
Tirou-te o mal e não
te dará o seu bem? Sim, da-lo-á. Prometeu-nos sua vida, mas é ainda mais
incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: "À minha
mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente feliz,
nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eis para onde vos
convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo,
para a ceia eterna, para a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à minha
vida eu vos conclamo! Não quereis crer que vos darei a minha vida? Retende,
como penhor a minha morte".
Agora, pois, enquanto
vivemos nesta carne corruptível, morramos com Cristo pela conversão dos
costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.
Não haveremos de
receber a vida bem-aventurada senão quando chegarmos àquele que veio até nós, e
quando começarmos a viver com aquele que por nós morreu.
Notas:
1 SI 87
2 Rm 4,25
3 Cl 3,1
4 SI 115
5 SI 71,9
6 SI
4,3
7 Ibid
Fonte:
GOMES, C. Folch Antologia
dos Santos Padres. São Paulo- Ed. Paulinas 1979
Jornal Online “A Voz de Lourdes” – Novembro de 2019
Compilação e Edição: Sérgio Bonadiman - Revisão e Publicação: Dermeval NevesResponsabilidade: PASCOM Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - Vila Hamburguesa – SP
Site da Paróquia: http://www.pnslourdes.com.br